quinta-feira, junho 01, 2006

A cuspidela

Em Portugal há quatro anos, já aprendi alguns dos costumes locais: comer bacalhau com natas, torcer Benfica, ultrapassar pela direita, etc. Mas existe algo que ainda me cria algumas dificuldades: a cuspidela.

Nos outros países europeus que tive ocasião de visitar é bastante raro ver uma pessoa cuspir no chão. E, mesmo assim, é feito de forma normal, sem jeito nenhum, acabando de ser um acto simplesmente de má-criação.

Em Portugal a cuspidela é algo diferente.
Em primeiro lugar, não existe distinção de idade ou de sexo; podemos afirmar que a cuspidela portuguesa é verdadeiramente um acontecimento que junta jovens e idosos, homens e mulheres, brancos e pretos. Uma cuspidela multiracial e interclassicista.

Mas a particularidade é bem outra.
Enquanto no resto da Europa as poucas pessoas que cospem tentam fazé-lo de forma menos visível, isso é, sem barulho e sem um mínimo de espectacularidade, em Portugal a cuspidela segue um ritual bem definido, ao qual ninguém se subtrai.

A prima fase é a “preparação”.
Ao que parece, para obter uma expulsão decente, é preciso que o indivíduo seja capaz de reunir por cima da garganta quanto mais muco possível. Para fazer isso, o cuspidor lusitano costuma pescar os resíduos directamente nos brônquios, de forma que o “projéctil” assuma uma bem determinada consistência. Penso que este facto seja fundamental para obter um cuspo com um caudal e uma trajectória ideal.
A fase da “preparação” é facilmente distinguível graças ao típico som, o mesmo que podemos ouvir nas ruas a qualquer hora do dia e em qualquer sítio: “aaaargghhhh”.

A segunda fase é a “elaboração”, tipo um tuning: a matéria está agora toda reunida na boca mas não chega, pois é preciso amalgamar o composto para obter o verdadeiro projéctil. Esta fase é silenciosa, demora poucos segundos, e precede a expulsão do cuspo. É bom dizer que o tempo da elaboração depende em boa medida do grau de destreza ou experiência do atirador: os indivíduos mais treinados podem reduzir a fase da elaboração a poucos décimos de segundos, passando directamente para a terceira fase. É claro, não é coisa que seja possível aprender de manhã à tarde: é precisa perseverança, uma boa predisposição e, se possível, um bom mestre. Em compensação, é possível treinar em qualquer lugar, desde que haja a presença de uma ou mais pessoas (condição imprescindível para que o cuspidor possa actuar).

E passamos à terceira fase: a expulsão.
Aqui não é possível vender gato por lebre: os profissionais destacam-se de imediato, pois o projéctil deles é rápido e, sobretudo, mirado. O cuspidor profissional sabe exactamente quando e para onde irá cair o seu cuspo, pois nada é deixado ao acaso: anos de treino permitem expelir a justa mistura de ar e muco (emitindo também o típico som: “puú”), com a velocidade requerida.
O principiante, pelo contrário, encontra aqui as suas maiores dificuldades e será bastante simples reconhecê-lo. Um som demasiadamente prolongado (sinal de uma mistura não optimizada), um projéctil que cai a poucos centímetros dos vossos pés, ou, nos casos mais penosos, um projéctil que não aguenta o contacto com a atmosfera e fragmenta-se com consequências embaraçosas: já tive ocasião de ver alguns destes inexperientes obrigados a limpar a própria roupa ou passar a mão nos lábios (nunca por nunca um profissional precisa de limpar a boca!).

Resumindo: em Portugal o simples acto de cuspir elevou-se ao máximo grau, o grau da arte.

Uma minha amiga, de visita na capital, perguntou-me: mas porque os portugueses cospem?

Custa-me admiti-lo, mas a verdade é que uma tal dúvida é sinónimo de profunda ignorância.

Porque Picasso pintava? Porque Vasco da Gama navegava? Não existem respostas, a arte é filha de si mesma. Tudo aquilo que podemos fazer é admirar, com humildade, os melhores e tentar, em medida menor, aperfeiçoar a nossa técnica à medida que os projécteis são expulsos. Quem sabe: pode ser que entre nós haja já um cuspidor a sério, um cuspidor à portuguesa. Um artista ainda desconhecido que um dia poderá exercer o seu dom na rua, causando a admiração dos transeuntes e dos turistas mais informados.
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